domingo, 11 de junho de 2017

Como seria a Hong Kong pós-1997 se Deng Xiaoping ainda vivesse?

10/6/2017, Tammy Tam, South China Morning Post












Parece lugar-comum, mas verdade é que o tempo voa mesmo. Mas não as lembranças. E tenho uma muito vívida, de uma noite gelada, inesquecível, há vinte anos.
"É verdade"?
"É. [Deng Xiaoping morreu] essa noite, às 21h08. Estou saindo para uma reunião, organizar as cerimônias..."


Esse o resumo de uma rápida mas impressionante conversa telefônica que tive, mais ou menos às 23h do dia 19/2/1997, para confirmar, antes de noticiar, a hora exata da morte de Deng, horas antes do comunicado oficial de que o grande líder da China já não vivia.

Na outra ponta da linha, estava uma fonte autorizada, que eu conhecia há anos. Eu estava em Pequim por mais de uma semana numa missão especial para a empresa de mídia para a qual trabalhava naquela época. Todos estávamos de sobreaviso, num mar de especulação incansável sobre o grave estado de saúde de Deng.

Naquela noite, os boatos voavam ainda mais ferozmente que noutros dias, depois que um veículo de Taiwan noticiara ainda sem confirmação a morte de Deng.

"Oito minutos depois das nove" – repetia para mim mesma, desligando o telefone e deixando que a ideia me invadisse. Era verdade. Aconteceu. No fundo da cabeça ainda ouvia o que Deng Rong, filha de Deng, dissera certa vez: "Sabe-se lá quantas vezes meu pai já morreu nos jornais de vocês [do 'ocidente']."

"Vamos para o hospital 301 e Praça Tiananmen" – disse ao meu câmera, decidindo apostar no hospital no qual todos diziam que Deng estaria internado em tratamento, e depois para o centro da capital, onde todas as ruas se encontram. Ele tinha ar de estar tão chocado quanto eu, enquanto corríamos para o carro.

Durante a noite, enquanto dirigíamos pela cidade, nada parecia ter acontecido. Eu só pensava que, em poucas horas, a nação despertaria, tomaria conhecimento do acontecido e mergulharia em luto profundo.

Não pude deixar de pensar nas reformas, se seriam de algum modo afetadas. E, honestamente, havia em mim incertezas devastadoras sobre Hong Kong: sem Deng, o que aconteceria a "um país, dois sistemas"?

As mesmas perguntas ainda permaneciam na minha cabeça poucos meses adiante, quando voltei a Pequim para cobrir o grande evento. De volta à Praça Tiananmen, quando chegou o momento histórico, vi multidões em festa celebrando a volta de Hong Kong à pátria-mãe, da tarde de 30 de junho até a manhã de 1º de julho.

Em Hong Kong, colegas na redação de nosso jornal haviam dito que chovera torrencialmente todo o dia, e que o mau tempo só fazia aumentar a sensação deles, de incerteza.

Contraste tão agudo de sentimentos dos dois lados da fronteira fizeram-me pensar se haveria tamanha incerteza, se Deng não tivesse morrido, e se, com ele vivo, haveria mais garantias.

São perguntas que às vezes ainda me voltam à mente, e por uma razão simples. Deng disse uma vez que o que desejava para a Hong Kong pós-1997 era uma ideia nova, sem qualquer precedente bem-sucedido no mundo, e que seria como "cruzar o rio sentindo as pedras". Assim sendo... Já percebemos as pedras?

Cheng Yiu-tong, peso-pesado pró-establishment, admitiu certa vez, abertamente, que a fórmula sem precedentes de governo concebida por Deng levaria inevitavelmente ao conflito em torno de um ponto fundamental: o que se tem de pôr em primeiro lugar, um país ou dois sistemas?

Fazendo um balanço hoje, temos muitos exemplos que confirmam essa previsão: todas as modalidades de disputas transfronteiras relacionadas a questões políticas, econômicas e sociais. O que mais enfurece Pequim é a ideia de independência de Hong Kong, embora tenha sido defendida por apenas um pequeno punhado de ativistas recentemente.

Ironicamente, o que mais se tem visto são pessoas e partidos e dos dois campos políticos opostos que se voltam todos para uma mesma figura – Deng – para colher argumentos com os quais defender o próprio campo.

Enquanto Pequim continua a repetir sempre que sem "um país" não haverá "dois sistemas", e que Deng jamais cedeu na questão da soberania, políticos da oposição de Hong Kong insistem em que a definição de Deng, de "patriotismo", inclui sim a liberdade para criticar o Partido Comunista governante.

"O comunismo jamais será derrotado por críticas ou ataques" – citam palavras de Deng.

Outro tópico amplamente debatido é a exigência, de Deng, de que "um país, dois sistemas" permaneça "inalterado por 50 anos". O que significa isso?

Só ingênuos no mundo político poderiam concluir que signifique mudanças zero, o que contraria a própria lei da natureza. Contudo tem havido controvérsia em torno de quais mudanças seriam desejáveis ou indesejáveis.

Com tantas mudanças políticas e sociais pelas quais Hong Kong está passando, Pequim parece estar mudando, da posição inicial de não se intrometer, para repetidos alertas de que o "alto grau de autonomia" prometida a Hong Kong não deve ser usado para confrontar ou minar a soberania da China.

O governante n. 3 da China, Zhang Dejiang, declarou recentemente a plena autoridade de Pequim sobre Hong Kong, exigindo que cumpra seu dever constitucional e imponha ali a legislação de segurança nacional, e dando o tom assim para futuras políticas do governo central para Hong Kong.

O discurso de Zhang causou calafrios em alguns setores cá em Hong Kong, mas o conceito de Deng "um país, dois sistemas" obviamente não foi criado do nada, do ar. Claro que foi resultado de concessões, refletindo o pragmatismo de Deng, consideradas as dificuldades que a China enfrentava enquanto negociava com os britânicos a devolução da cidade, nos idos anos 1980s.

Ninguém sabe se Deng seria mais concessivo ou mais rígido em relação a Hong Kong se ainda estivesse entre nós, mas a linha final de "um país" foi claríssima.

Ela explica por que Deng insistiu em mandar para lá o Exército de Libertação Popular como símbolo forte da soberania chinesa, mas aceitou que os soldados ficassem confinados nos quartéis.

Pensando adiante, a implementação futura de "um país, dois sistemas" verá ainda idas e vindas, mas Hong Kong continua a ser a cidade mais aberta, livre e internacionalizada da China. As pessoas aqui têm acesso irrestrito às mídias sociais, e são livres para criticar quem queiram por Facebook ou YouTube; a vigília anual à luz de velas no Parque Vitória comemorando o 4 de junho é uma tradição, não importa se Pequim gosta ou não gosta; todos os protestos de rua são permitidos, desde que feitos como a lei autoriza; e investidores estrangeiros ainda têm fé em nossos sistemas legais e financeiros. Tudo isso graças àquela fórmula única de governo.

Com ou sem Deng, não haverá mudanças na linha de Pequim, e na realidade de que Hong Kong é parte inalienável da China. São necessários esforços sempre maiores dos dois lados da fronteira para encontrar pontos de convergência e manter saudáveis as relações.

É possível atravessar o rio, com as pedras da Lei Básica para ajudar Hong Kong a sentir o próprio caminho para o sucesso.*****

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