domingo, 14 de maio de 2017

França: o dia seguinte

9/5/2017, Jacques Sapir, Russeurope, Hypothèses


Entreouvido na Vila Vudu:

Quem duvidava dos feitiços que a globalização da grande finança à moda Wall Street operaria para desgraçar o planeta Terra a favor dos mais ricos e contra os mais pobres, já não tem como negar – em 2017 afinal Brasília-DF **É** Paris. Vergonha [pano rápido]
















Emmanuel Macron foi eleito com grande maioria dos votos expressos dia 7 de maio, equivalente a 66,1% dos "votantes". Em porcentagem é resultado impressionante, mas que é também resultado de uma ilusão de ótica. Inúmeros comentaristas chamaram a atenção para o mesmo detalhe. Agora que já estão disponíveis os números definitivos do 2º turno da eleição presidencial, melhor analisar com mais rigor e extrair conclusões mais precisas sobre o que realmente aconteceu. E também é hora de pensar no futuro. Passadas as eleições e as reações, fingidas ou autênticas, à eleição presidencial, é chegada a hora do dia seguinte.

Os resultados do 2º turno 

Acontecido na sequência do raio que desabou sobre a política francesa no 1º turno, que ali passou do bipartidarismo, talvez do tripartidarismo, para o quadripartidarismo, o 2º turno também guarda seu lote de surpresas. Convém analisar mais precisamente a repartição dos votos. O alto número de abstenções e de votos "brancos ou nulos" chega a 43% dos eleitores inscritos. Além disso, vê-se a importância das abstenções e dos votos em branco os quais, combinados, chegam a 31,8% dos eleitores inscritos.


Quadro 1: Em % de inscritos
E. Macron
  43,63 %
    M. Le Pen
22,38 %

    Abstenções
25,44 %

Brancos
6,35 %

Nulos
2,21 %


Uma primeira constatação impõe-se: o resultado que Emmanuel Macron alcançou nada tem de impressionante. Estamos a quilômetros do resultado "avassalador" de que fala a mídia. Claro que merece destaque o fato de ele ter obtido quase duas vezes o número de votos do adversário. É nível que pode ser comparado ao que Jacques Chirac alcançou em 2002 em eleição presidencial na qual já havia um candidato da Frente Nacional no 2º turno. Jacques Chirac, é preciso não esquecer, estava concluindo o 1º mandato. Concorria à continuação do mandato de sete anos que se seguiu à eleição presidencial de 1995. Seu resultado no primeiro turno da eleição de 2002 fora péssimo. Estava portanto, em teoria, muito mal posicionado para alcançar resultado avassalador no 2º turno, ainda que os comícios estivessem crescendo por todo o país.
Naquele caso de traços muito especiais, Jacques Chirac obtivera os votos de 62% dos eleitores inscritos. Há pois uma distância de 19 pontos que se abriu, em 15 anos, entre a eleição de Jacques Chirac e a de Emmanuel Macron. É distância altamente significativa. Mostra que houve, mais, um voto de repetição [fr. un vote par défaut]; as sondagens, a serem tomadas com precaução, indicam que só 41% das pessoas que escolheram votar em Macron aprovam o programa do candidato (como o confirma uma pesquisa de Louis Harris). Aqui, o universo pesquisado são os eleitores que já votaram, seja em Macron seja em Marine Le Pen.

QUADRO 2: Grau de aprovação de cada candidato
Aprovam
 o projeto
Não aprovam
o projeto
Macron
41 %
59 %
Le Pen
60 %
40 %
Em % de inscritos
Macron
17,9 %
25,7 %
Le Pen
13,4 %
9,0 %
Fonte: Harris Interactive


Se se comparam esses números e os resultados da eleição de 2012, na qual François Hollande atraiu para ele, no 2º turno, perto de 42,5% dos inscritos e 55% dos eleitores diziam persuadidos (mais ou menos) pelo programa do candidato. Assim, são 23,3% dos inscritos que podem ser considerados como pessoas que "concordam com o projeto" de François Hollande, os que se devem comparar aos 17,9% de Emmanuel Macron. Nada disso impediu que François Hollande fosse um dos piores presidentes da História desde 1873.

Isso posto, é preciso relativizar, nem tanto a vitória de Emmanuel Macron, que é indiscutível, mas, muito mais, a importância e a significação políticas daquela vitória.

A estratégia eleitoral de Emmanuel Macron

As fraturas do 1º turno por enquanto persistem e pesarão muito sobre as eleições legislativas que virão. Pode-se já entrever a estratégia de Emmanuel Macron nesse quesito: tentará quebrar Os Republicanos, acabando de fazer encolher o P "S". Mas sob risco de a estratégia sair-lhe pela culatra. Cada passo que Macron der na direção de seduzir o centro-direita "Republicano" mais aprofundará os antagonismos à sua esquerda. Ora, a cerimônia fúnebre do P "S" concentrada como está no trabalho de seduzir tenores carentes de plateias que lhes deem ouvidos, como Manuel Valls, contribui para que Jean-Luc Mélenchon atraia para ele boa parte dos eleitores que se encaminharam na direção de Benoît Hamon no 1º turno. Em nenhum caso se pode garantir que a estratégia eleitoral de Emmanuel Macron será bem-sucedida. 

Por tudo isso, é possível que se encontre, nas eleições legislativas, uma França dividida em quatro, mas com um polo à esquerda mais forte do que havia no 1º turno. E se ainda assim a estratégia funcionar, ela corre alto risco de assumir a aparência de uma enorme tômbola eleitoral, que renovará as esperanças de uma maioria de eleitores. Nesse caso, teríamos uma divisão em três da vida política francesa, mas com divisão da direita tradicional, o que terá consequências significativas e poderá reforçar o partido que nascer da Frente Nacional. 

O dilema diante do qual Emmanuel Macron vê-se hoje é claro: deve ele trabalhar para provocar o esfacelamento da direita tradicional, sob o risco de empurrar na direção de Jean-Luc Mélenchon o que resta do eleitorado de esquerda no P "S", e de empurrar na direção de Marine Le Pen uma parte do eleitorado de direita?

A segunda perna do mesmo dilema indica que há risco, sim, de Macron favorecer o crescimento da Frente Nacional. Se a evolução prevista orientar-se na direção de mudança nenhuma, movimento planejado para não ultrapassar uma simples troca de nome, só poderá aspirar a um efeito mais limitado. 

Os movimentos de vai-e-vem de final de campanha e o debate execrável custaram muito caro a Le Pen. De fato, de uma dinâmica claramente ascendente no final da campanha do 1º turno, quando dos 38% de intenções de votos em poucos dias chegou aos 42%, já na noite anterior ao 2º turno ela havia caído de volta aos 34%. 

Pode-se estimar que Le Pen tenha perdido pelo menos 2,5 milhões de votos por causa das tergiversações, circunvoluções e autodesmentidos em questões da mais alta importância como a França separar-se do euro ou a idade exigida para a concessão de aposentadorias [sobre isso, ver "Le Pen desperdiçou a chance de atacar seriamente as políticas de arrocho (supostas de 'austeridade') de Macron", 4/5/2017, Ramin Mazaheri, The Vineyard of the Sakertrad. no Blog do Alok (NTs)]. Resta saber se os eleitores manterão na memória a péssima imagem que a candidata deixou na última semana da campanha. Se for o caso, a capacidade de Macron atrair eleitores dos Republicanos para as eleições legislativas será alterada.

Quanto a Jean-Luc Mélenchon, não tem do que se envergonhar da campanha que fez para o 1º turno, quando lutou como um santo guerreiro contra uma imprensa extremamente hostil, que nunca hesitou em descaracterizar e falsificar as posições do candidato da esquerda. A atitude de Mélenchon para o segundo turno, apesar das pressões vergonhosas que enfrentou, foi sucesso absoluto. Mas as divergências que há hoje entre a França Insubmissa (fr. France Insoumise) e o aparelho do Partido Comunista Francês, os acordos e pequenos acertos de última hora infelizmente pesarão nem tanto sobre a campanha, mas sobre os resultados.

A questão das eleições legislativas 

Vê-se assim, portanto, que a principal questão nas legislativas que se aproximam é saber se o partido de Emmanuel Macron, cuja estratégia está hoje em vias de se esclarecer, alcançará a maioria absoluta de deputados ou se, para chegar lá, terá de aceitar uma aliança com o que tiver sobrevivido do P "S". Essa decisão é essencial. 

Se Emmanuel Macron obtiver maioria absoluta no parlamento, poderá pôr em ação facilmente seu projeto econômico, que se pode descrever como uma redução de cerca de 20% nos custos salariais para devolver às empresas francesas a competitividade que a França perdeu por efeito do euro. Porque essa redução nos salários, seja obtida diretamente, seja resultado da destruição da legislação trabalhista e dos benefícios sociais, corresponde de fato a ignorar os salários reais como o FMI o exige. Levará a uma explosão das desigualdades, e a ampliar ainda mais o poder dos mais ricos sobre toda a sociedade.

Essa é precisamente a questão que se esconde nas próximas eleições legislativas na França. Evidentemente não é a única. O engajamento de Emmanuel Macron, que se comprometeu durante a campanha a "refundar" a Europa colide frontalmente contra a atitude da Comissão Europeia e, também, dos dirigentes alemães. Macron não terá alternativa: ou optará pelo confronto – ideia que ele descarta 'preventivamente' – ou a França sofrerá novas perdas na própria soberania. Nas próximas semanas, com certeza, conheceremos mais e melhor a personalidade de Macron nesses quesitos.

Por tudo isso, é especialmente importante que o partido de Emmanuel Macron não chegue, nem perto nem longe, de garantir para ele a maioria do Parlamento. Não resolverá os problemas, mas, pelo menos, impedirá que se tomem medidas que por mais legais que sejam serão gravemente nocivas e destrutivas para o país.******

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