domingo, 12 de março de 2017

O 'aniquilamento' apocalíptico de Steve Bannon, por Alastair Crooke

9/3/2017, Alastair Crooke,* Consortium News












Steve Bannon costuma iniciar muitas de suas palestras para ativistas e reuniões do Tea Party com a seguinte 'história':


"Às 11h do dia 18/9/2008, Hank Paulson e Ben Bernanke disseram ao presidente dos EUA que já haviam soprado $500 bilhões de liquidez para dentro do sistema financeiro nas 24 horas anteriores – mas precisavam de mais um trilhão de dólares, naquele mesmo dia.

A dupla disse que, se não obtivessem o dinheiro imediatamente, o sistema financeiro dos EUA implodiria nas 72 horas seguintes; o sistema financeiro mundial, em três semanas; e o caos político e a agitação social sobreviriam em um mês." (No final, Bannon observa, o mais provável é que tenham requisitado $5 trilhões, mas ninguém sabe realmente quanto foi, porque não houve qualquer registro de todos esses trilhões).

"Nós (os EUA) temos" – Bannon continua – "no início dos resgates que se seguiram, dívidas de $200 trilhões, mas patrimônio líquido – incluindo tudo – de coisa como $50-60 trilhões." (Não esqueçamos que o próprio Bannon é ex-banqueiro de Goldman Sachs).

"Estamos virados de pernas para cima; as democracias industriais hoje têm um problema que nunca tivemos antes: estamos super alavancados (temos de passar por desalavancagem massiva); e construímos um estado de bem-estar que é completamente e totalmente insustentável.

"Eis porque é uma crise (...) o problema (...) é que os números tornaram-se tão esotéricos que nem os rapazes de Wall Street, de Goldman Sachs, os rapazes com quem eu trabalho, e os rapazes do Tesouro (...) É muito difícil arrumar tudo isso (...) déficits de trilhão de dólares (...) etc."

Mas, diz Bannon – apesar desses números esotéricos, inimagináveis, que flutuam à nossa volta por aí – as mulheres do Tea Party (e são as mulheres, principalmente, ele sempre repete) entenderam. Elas conhecem uma realidade diferente: elas sabem o quanto custam as guloseimas, elas sabem que seus filhos devem $50 mil de dívida para estudarem, que continuam a morar com os pais, que não veem nem sinal de emprego para eles: "Por isso dei ao filme o título de Geração Zero, é essa geração, quem tem de 20 a 30 anos: nós os varremos do mundo; acabamos com a vida deles."

E Bannon não é o único. Dez anos antes, em 2000, Donald Trump escrevia em veia similar, num panfleto que marcaria a primeira vez que considerou a possibilidade de candidatar-se à presidência dos EUA: "Minha terceira razão de querer falar é que o que vejo não é apenas incrível prosperidade (...) mas também a possibilidade de revolta econômica e social (...). Olhem para o futuro e, se vocês são como eu, verão nuvens de tempestade crescendo e crescendo. Grandes Problemas. Espero estar errado, mas acho que estamos diante de um crash econômico como jamais vimos antes."

E antes da recente eleição presidencial, Donald Trump continuava apegado à mesma narrativa: o mercado de ações estava perigosamente inflado. Numa entrevista à CNBC, Trump disse, "Espero estar errado, mas acho que estamos numa bolha, numa bolha grande, inchada, gorda, pingando" –, e acrescentou que as condições eram tão perigosas que o país caminhava diretamente para uma "recessão muito massiva" e que "se você subir as taxas de juros, um pouco só, que seja, [tudo] virá abaixo."

O Paradoxo

E aqui precisamente, está o paradoxo: por que – se Trump e Bannon veem a economia já super alavancada, eivada de bolhas e frágil demais para acomodar até um mínimo aumento na taxa de juros – Trump (nas palavras de Mike Whitney) "prometeu mais negócios e menos regras para Wall Street (...) cortes de impostos, gastos governamentais massivos e menos regulações (...) $1 trilhão em estímulo fiscal para elevar o gasto dos consumidores e fazer crescer os lucros das empresas (...) cortar impostos sobre empresas e engordar os balanços das maiores empresas norte-americanas. E está detonando [a lei] Dodd-Frank, as regulações 'onerosas' criadas depois da implosão financeira de 2008, para impedir outro cataclismo que dizimasse a economia"?

Será que o presidente Trump vê o mundo de outro modo, agora que é presidente? Ou será que se separou do modo Bannon de ver o mundo?

Bannon é muito frequentemente citado – embora quase sempre por mídia hostil, e para expor Trump (falsamente) como o "presidente acidental" que não esperava vencer – como a força pensante por trás do presidente Trump. Mas de fato as políticas atuais de Trump, domésticas e exteriores, estavam todas à vista, antevistas e completamente presentes, no panfleto de Trump, em 2000.

Em 2000, Bannon era menos político, observa a roteirista de cinema Julia Jones, colaboradora há muito tempo de Bannon, "Mas os ataques de 11/9", diz Jones, "mudaram Bannon"; e o trabalho dos dois não sobreviveu ao crescente engajamento político dele.


O próprio Bannon atribui sua radicalização política à experiência que viveu com a Grande Crise Financeira de 2008. Ele detestou o modo como seus colegas do banco Goldman zombaram dos "esquecidos" do Tea Party. Como Julia Jones vê o processo, uma chave muito mais confiável para decifrar a visão de mundo de Bannon pode estar no seu serviço militar.

"Bannon respeita o dever" – disse ela no início de fevereiro. "A palavra que ele usa muito é 'dharma'." Bannon descobriu a ideia dedharma no Bhagavad Gita, ela relembra. Serve para descrever a trilha de cada um na própria vida, ou o lugar de cada um no universo.

Mas não há sinais de que o presidente Trump nem mudou o próprio pensamento econômico, nem alterou o modo como compreende a natureza da crise que os EUA (e a Europa) têm pela frente.

Os testes que virão 

São dois homens espertos. Trump compreende os negócios; Bannon, as finanças. Com certeza conhecem os ventos de proa contra os quais navegam: a disputa que se aproxima para aumentar o "teto da dívida" norte-americana, de $20 trilhões (que começará a morder dia 15 de março[1]), em momento de disputa furiosa entre facções do Partido Republicano, a improbabilidade de as propostas do presidente para impostos ou fiscais virem a ser aprovadas rapidamente; e a alta probabilidade de que o Federal Reserve aumentará as taxas de juros... "até que alguma coisa quebre." Se são tão espertos, o que, então, está acontecendo?

O que Bannon acrescentou à parceria porém, é uma clara articulação da natureza dessa "crise" no filme que fez, Generation Zero, que é explicitamente construído no quadro de um livro intitulado The Fourth Turning: An American Prophecy [O Quarto Giro: Uma profecia norte-americana], escrito em 1997 por Neil Howe e William Strauss.[2]


Nas palavras de um dos autores, a análise "rejeita a premissa profunda dos historiadores ocidentais modernos de que o tempo social seja ou linear (progresso continuado ou declínio) ou caótico (complexo demais para que se possa ver em que direção caminha). Em vez disso, adotamos o insight de praticamente todas as sociedades tradicionais: o tempo social é ciclo recorrente no qual os eventos só se tornam significantes na medida em que são 'reencenações', na palavra do filósofo Mircea Eliade.[3] Em espaço cíclico, se você extrai os acidentes e a tecnologia, resta apenas um número limitado de humores sociais, que tendem a se repetir numa ordem fixa."

Howe e Strauss escrevem: "O ciclo começa com o Primeiro Giro, um 'Ponto Alto' que vem depois de uma era de crise. Num Ponto Alto, as instituições são fortes e o individualismo é frágil. A sociedade é confiante quanto ao ponto para onde quer ir coletivamente, ainda que possa sentir-se engessada pelo conformismo prevalecente.

"O Segundo Giro é um 'Despertar', quando as instituições são atacadas em nome de princípios superiores e valores mais profundos. E quando a sociedade está atingindo essa maré alta de progresso público, as pessoas de repente se cansam de toda a disciplina social e querem recapturar o senso de autenticidade pessoal.

"O Terceiro Giro é um 'Aniquilamento' [ing. unravelling], em vários sentidos o oposto do Ponto Alto. As instituições são frágeis e não se confia nelas, e o individualismo é forte e florescente.

"Por fim, o Quarto Giro é período de 'Crise'. É quando nossa vida institucional é reconstruída desde os alicerces, sempre em resposta a uma ameaça percebida à própria sobrevivência da nação. Se a história não produz essa ameaça grave e urgente, os líderes do Quarto Giro invariavelmente encontrarão alguma – e podem até fabricar uma – para mobilizar a ação coletiva. A autoridade cívica renasce, e pessoas e grupos começam a se destacar como participantes numa comunidade maior. Quando esses surtos prometeicos de esforço cívico resolvem-se, os Quartos Giros refrescam e redefinem nossa identidade nacional" (grifado por mim).

Geração Woodstock 

filme de Bannon foca principalmente nas causas da crise financeira de 2008, e nas "ideias" que brotaram da "geração Woodstock" (o festival musical de Woodstock aconteceu em 1969), e que permearam, de um modo ou de outro, a sociedade norte-americana e europeia.

O narrador chama a geração Woodstock de "Filhos da Fartura" [ing. "Children of Plenty"]. Ali foi um ponto de inflexão: uma segunda vinda de "Despertar"; uma descontinuidade na cultura e nos valores. A geração mais velha (qualquer um com mais de 30 anos) foi declarada como nada tendo a dizer, nenhuma experiência a oferecer para ajudar. Foi a elevação do "princípio do prazer" (como fenômeno "novo", como se fosse descoberta "deles/delas"), acima da ética puritana. O Id [também traduzido como "Isso"] celebrava fazer o que lhe era típico; tudo era "Ego" e narcisismo.[4]

Seguiu-se o "Aniquilamento" [ing. "Unravelling"], sob a forma de fraqueza institucional e do governo: o "sistema" não teve coragem para tomar as decisões difíceis. Invariavelmente se tomam as decisões fáceis: as elites absorveram as crianças mimadas, autorreferentes, o ethos da geração "eu". Os/as dos anos 1980s e 1990s tornaram-se os/as da era do "capitalismo de cassino e os/as "homem de Davos".

Os pródigos resgates de bancos norte-americanos pelos contribuintes depois da quebra [ing. defaults] e das crises mexicana, russa, asiática e argentina lavaram os caríssimos erros dos banqueiros. A isenção introduzida pela [lei] "2004 Bear Stearns", que permitia que os cinco grandes bancos alavancassem seus empréstimos acima de 12:1 – e que rapidamente foi ampliada para 25:1, 30:1 e até 40:1 – autorizou a tomada irresponsável de riscos e os bilhões de lucros inventados. A bolha "Dot Com" foi ajeitada por política monetária – e então os resgates massivos de 2008 deram jeito outra vez nos bancos. 

O "Aniquilamento" foi essencialmente um fracasso cultural: fracasso de responsabilidade, de coragem ante escolhas difíceis – foi, em resumo, o filme sugere, uma era de instituições degeneradas, políticos corrompidos e gente irresponsável mandando em Wall Street – a classe governante – autoindulgentes e "depois de abdicar de toda a responsabilidade".

Agora estamos entrando no "Quarto Giro": "Todas as escolhas fáceis estão de volta, diante de nós". O "sistema" ainda não encontrou coragem. Bannon diz que esse período será o "mais repugnante, o mais feito da história". Será brutal, e "nós" [para Bannon, 'nós' são os ativistas do Tea Party de Trump) serão "demonizados", "vilificados". Bannon prevê que essa fase pode durar 15, 20 anos.

Tragédia Grega 

A chave desse Quarto Giro é "caráter." Trata-se de valores. O que Bannon chama de "nossa crise" talvez apareça mais claramente expresso quando o narrador diz: "a essência da tragédia grega é que quando alguém morre não é como um acidente de trânsito [i.e. a grande crise financeira não acontece por falta de sorte].

O entendimento grego é que tragédia é a circunstância onde algo acontece porque tem de acontecer, por causa da natureza dos participantes. Porque o povo envolvido faz tal coisa acontecer. E não escolhem fazer tal coisa acontecer: aquela é a natureza deles."

E eis a implicação mais profunda do que transpirou para fora de Woodstock: a natureza do povo mudou. O "princípio do prazer", o narcisismo, deslocou os valores "mais altos" que fizeram os EUA o que são. A geração que acreditou que "não havia risco, não havia montanha que não pudessem escalar" atraiu a crise sobre eles/elas mesmos(as). Varreram 200 anos de responsabilidade financeira em cerca de 20 anos. Isso, me parece, captura a essência do pensamento de Bannon.

Estamos no seguinte ponto, diz Bannon: sempre vem um duro inverno de fome, depois de um verão de calor e de preguiça. E se converte em tempo de provação, tempo de adversidade. Cada estação na natureza tem sua função vital. Quartos Giros são necessários: são uma parte do ciclo de renovação.

O filme de Bannon fecha com uma frase do autor Howe: "a história é sazonal, e o inverno está chegando."

E qual a mensagem política imediata? É simples, diz o narrador do filme de Bannon: "PARE": pare de fazer o que está fazendo. Pare de gastar como antes. Pare de assumir compromissos de gastos que não podem ser cumpridos. Parem de hipotecar o futuro de seus filhos, carregando-o de dívidas. Pare de manipular o sistema bancário. É tempo de pensar duro, para dizer "não" a resgates, para mudar a cultura, para reconstruir a vida institucional.

Legado Cultural 

E como se reconstrói a vida cívica? Olha-se para os que ainda têm senso de dever e de responsabilidade – para quem preservou um legado cultural de valores. É notável que, quando Bannon dirige-se aos ativistas, praticamente a primeira coisa que faz e saudar os veteranos e oficiais em serviço, elogia as qualidades deles, seu senso de dever.

Não surpreende portanto que o presidente Trump queira aumentar dois orçamentos: dos veteranos e dos militares. Não é estertor da beligerância dos militares norte-americanos; é, mais, que Trump os vê como guerreiros para o "inverno" de adversidade e duras provações, que se aproxima. Então, e só então, Bannon fala da "fina linha azul" de ativistas que têm força de caráter, senso de responsabilidade, de dever. E diz que o futuro estão nas mãos deles, exclusivamente nas mãos deles.

Tudo isso soa como fala de quem – Bannon e Trump – quer inflar mais uma bolha financeira, deixar rolar o cassino de Wall Street (expressão deles)? Não soa? Nesse caso, o que está acontecendo?

Eles sabem que "a crise" está chegando. Recordemos o que Neil Howe escreveu no Washington Post sobre o "Quarto Giro":

"É quando nossa vida institucional é reconstruída desde os alicerces, sempre em resposta a uma ameaça que se percebe contra a própria sobrevivência da nação. Se a história não produz tal ameaça urgente, líderes do Quarto Giro inevitavelmente encontrarão alguma – e podem até fabricar uma ameaça –, para mobilizar a ação coletiva. Revive a autoridade civil, e pessoas e grupos começam a aparecer e reunir-se como participantes numa comunidade maior. E esses surtos prometeicos de esforço civil alcançam a resolução, os Quartos Giros e redefinem nossa identidade nacional."


Trump não precisa "fabricar" uma crise financeira. Acontecerá "porque tem de acontecer, por causa da natureza dos participantes (no atual 'sistema'). Porque o povo envolvido a faz acontecer. E não escolhem fazê-la acontecer: porque essa é a natureza delas."

Não é sequer culpa do presidente Obama ou do secretário do Tesouro Hank Paulson per se. São simplesmente quem são.

Trump e Bannon portanto não estão querendo acender os "espíritos animais" dos atores no "cassino" financeiro (como muitos na esfera financeira parecem assumir). Se o filme de Bannon e o modo como Trump articula a crise significam alguma coisa, é que o objetivo deles é acender os "espíritos animais" dos "sacrificados da classe trabalhadora e daqueles norte-americanos esquecidos" do Meio-oeste, Michigan, Indiana, Ohio, Wisconsin e Pennsylvania.

Naquele momento, esperam que a "fina linha azul" dos ativistas una-se também num surto prometeico de esforço civil que reconstruirá a vida econômica e institucional dos EUA.

Se for isso mesmo, a visão Trump/Bannon é uma jogada audaciosa – e extraordinária…*****



* Alastair Crooke é britânico, diplomata, fundador e diretor de Conflicts Forum.
[1] Sobre isso, ver "EUA: Diz-que dia 15/3/2017 para tudo...", 27/2/2017, Tyler Durden, Zero Hedge (em breve em Blog do Alok) [NTs].
[2] Sobre o livro, há matéria [valha o que valer] em espanhol, de 2012, em http://www.bibliotecapleyades.net/profecias/esp_profecia40.htm. A página dos autores está aqui (ing.) [NTs].
[3] Mircea ELIADE [1907-1986] O sagrado e oprofano [1957] 1992. São Paulo: Livraria Martins Fontes (tópicos), trad. Rogério Fernandes (PDF) [NTs].
[4] FREUD, S. O Eu e o Id e Outros Trabalhos (vol. 19, PDF) [NTs].

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