sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Provocando a guerra nuclear com o apoio da mídia, por John Pilger

24.08.2016, John Pilger, Counterpunch

Tradução: Lolita Sala
Revisão da tradução: Thelma Annes de Araújo


A absolvição de um homem acusado do pior dos crimes – o genocídio – não foi manchete. Nem a BBC nem a CNN cobriram o caso. Pelo britânico The Guardian passou um breve comentário. Compreende-se por que esta admissão oficial tão rara tenha sido ocultada ou suprimida: ela explicaria demais sobre como regem o mundo os que regem o mundo.

O Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia [International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia – ICTY] em Haia, inocentou, sem alarde, o falecido presidente sérvio Slobodan Milosevic dos crimes de guerra cometidos durante a guerra da Bósnia de 1992 a 1995, inclusive do massacre de Srebrenica.

Longe de conspirar com o líder bósnio-sérvio condenado Radovan Karadzic, Milosevic na verdade "condenava a limpeza étnica", fez oposição a Karadzic e tentou pôr fim à guerra que esfacelou a Iugoslávia. Esta verdade, enterrada perto do fim de um processo de 2.590 páginas sobre Karadzic, no final de fevereiro, torna ainda mais vazia a propaganda que visava justificar o ataque sanguinário e ilegal da OTAN à Sérvia em 1999.


Milosevic sucumbiu a uma parada cardíaca em 2006, sozinho em sua cela em Haia, durante o que se pode considerar um julgamento falsificado em um "tribunal internacional" inventado por estadunidenses. Negada a cirurgia cardíaca que poderia ter salvado sua vida, seu estado de saúde deteriorou-se, mas continuou sendo monitorado e mantido em segredo por funcionários do governo dos Estados Unidos, conforme posteriormente revelado pelo WikiLeaks.

Milosevic foi vítima da propaganda de guerra que se alastra hoje como uma torrente, inundando nossas telas e jornais e deixando transparecer o grande perigo que paira sobre todos nós. Ele foi o protótipo do demônio, difamado pelos meios de comunicação do ocidente como o "Carniceiro dos Bálcãs", culpado de "genocídio", especialmente na província secessionista iugoslava do Kosovo. Esses foram os termos usados pelo primeiro-ministro Tony Blair, invocando o Holocausto e exigindo medidas contra "este novo Hitler". David Scheffer, "ambassador-at-large" ["Embaixador Itinerante" para Crimes de Guerra dos EUA], declarou que "o número de homens de etnia albanesa com idades entre 14 e 59 anos, assassinados pelas forças de Milosevic pode chegar a 225 mil".

Essa foi a justificativa para que a OTAN, liderada por Bill Clinton e Tony Blair, iniciasse os bombardeios que mataram centenas de civis em hospitais, escolas, igrejas, parques e estúdios de televisão e destruísse a infraestrutura econômica da Sérvia. Foi um ato descaradamente ideológico. Em uma notória "conferência de paz" em Rambouillet, na França, Milosevic foi confrontado por Madeleine Albright, então Secretária de Estado dos Estados Unidos, que seria alçada à infâmia por sua observação de que as mortes de meio milhão de crianças iraquianas "valeram a pena".

Madeleine Albright dirigiu a Milosevic uma "proposta" que líder nacional algum poderia aceitar: a menos que ele concordasse com a ocupação militar estrangeira em seu país, com as forças de ocupação "isentas do processo legal", e com a imposição de um "livre mercado" neoliberal, a Sérvia seria bombardeada. Isso consta em um "Anexo B", que os meios de comunicação não leram ou omitiram. O objetivo era aniquilar o último estado independente "socialista" da Europa.

Assim que a OTAN abriu fogo, houve uma debandada de refugiados kosovares "fugindo de um holocausto". Uma vez terminada, equipes policiais internacionais pousaram sobre o Kosovo com a missão de exumar as vítimas do "holocausto". O FBI não foi capaz de encontrar uma única vala comum e voltou para casa. A equipe forense espanhola fez o mesmo, enquanto seu líder denunciava furioso "a pirueta semântica das máquinas de propaganda de guerra". A contagem final dos mortos no Kosovo totalizou 2 788, incluindo combatentes de ambos os lados, sérvios e ciganos assassinados pelo Exército de Liberação do Kosovo, pró-OTAN. Não houve genocídio. O ataque da OTAN foi uma fraude. E foi um crime de guerra.

Os alardeados mísseis "guiados com precisão" dos EUA atingiram, salvo raras exceções, apenas alvos que não eram militares, mas civis. Incluindo os estúdios dos noticiários da Rádio Televisão Sérvia em Belgrado. Dezesseis pessoas foram mortas, entre elas cinegrafistas, produtores e uma maquiadora. Desrespeitosamente, Blair descreveu estas vítimas como membros do "comando e controle" da Sérvia. Em 2008, Carla Del Ponte, promotora do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia, revelou ter sido pressionada a não investigar os crimes da OTAN.

Este modelo serviu para as invasões subsequentes de Washington: Afeganistão, Iraque, Líbia e, furtivamente, a Síria. Todos podem ser qualificados como "crimes por excelência", segundo o critério empregado no Tribunal de Nuremberg; todos dependiam da propaganda dos meios de comunicação de massa. Enquanto o jornalismo de tablóide desempenhava seu papel tradicional, o mais eficaz foi o jornalismo considerado sério, crível, frequentemente o liberal – a fervorosa promoção de Tony Blair e de suas guerras, realizada pelo Guardian, as incessantes mentiras sobre as inexistentes armas de destruição em massa de Saddam Hussein no Observer e no New York Times, e a infalível batida sincopada da propaganda do governo na BBC preenchendo o silêncio das suas omissões.

No auge dos bombardeios, a correspondente da BBC Kirsty Wark entrevistou o general Wesley Clark, comandante da OTAN. A cidade sérvia de Nis tinha acabado de ser pulverizada com bombas americanas de fragmentação, que mataram mulheres, idosos e crianças em um mercado a céu aberto e em um hospital. Wark não fez uma única pergunta sobre isso ou sobre quaisquer outras mortes de civis.

Outros foram ainda mais longe. Em fevereiro de 2003, um dia depois de Blair e Bush terem aberto fogo contra o Iraque, o editor de política da BBC, Andrew Marr, de pé em Downing Street, fez um verdadeiro discurso de vitória, informando entusiasmadamente a seus telespectadores que Blair "havia dito que eles seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue, e que no fim os iraquianos estariam comemorando. E nos dois sentidos, ficou comprovado conclusivamente que ele tinha razão." Hoje, após um milhão de mortos e a ruína de uma sociedade, as entrevistas de Marr, da BBC, são recomendadas pela embaixada dos EUA em Londres.

Marr foi seguido por um coro de declarações de colegas de que Blair estava "vingado". O correspondente da BBC em Washington, Matt Frei, afirmou: "Não há dúvida de que o desejo de levar o bem, de levar os valores dos EUA ao resto do mundo e especialmente ao Oriente Médio... agora depende cada vez mais do poder militar".

Esta obediência aos Estados Unidos e aos seus colaboradores como uma força benigna que "leva o bem" está profundamente imbricada no jornalismo dominante ocidental. Ela garante que a catástrofe de hoje na Síria seja atribuída exclusivamente a Bashar al-Assad, apesar de o Ocidente e Israel há muito conspirarem para o derrubar, não por preocupações humanitárias, mas para consolidar o poder de fogo de Israel na região. Esta é a finalidade das forças jihadistas, lançadas e armadas pelos EUA, Grã-Bretanha, França, Turquia e prepostos dessa "coalizão". São eles que divulgam a propaganda e os vídeos que são notícia nos EUA e na Europa, e que proporcionam acesso para os jornalistas que garantem uma "cobertura" unilateral na Síria.

Aleppo está nos jornais. A maioria dos leitores e espectadores não tem como saber que a maior parte da população vive na zona ocidental do município, controlada pelo governo, mas que diariamente sofre bombardeios de artilharia da Al-Qaeda, patrocinada pelo ocidente, isto não é notícia. Em 21 de julho, bombardeiros dos EUA e da França atacaram uma aldeia estabelecida pelo governo na província de Aleppo e mataram 125 civis. Este fato foi relatado na página 22 do Guardian. Nenhuma foto.

Depois de criar e apoiar o jihadismo no Afeganistão na década de 1980 como a Operação Ciclone – uma arma para destruir a União Soviética –, os EUA estão fazendo algo semelhante na Síria. Assim como os Mujahideen afegãos, os "rebeldes" sírios são os soldados rasos dos EUA e da Grã-Bretanha. Muitos lutam pela Al-Qaeda e suas variantes. Alguns, como a Frente Al-Nusra, já se rebatizaram buscando se adequar às suscetibilidades dos EUA após o 9/11 [ataques de 11 de setembro de 2001]. A CIA os controla, com dificuldade, assim como aos jihadistas no mundo todo.

O objetivo imediato é destruir o governo de Damasco, que tem o apoio da maioria dos sírios, segundo a pesquisa com maior credibilidade (YouGov Siraj), ou que ao menos é o governo a quem recorrem em busca de proteção, apesar das barbáries que ocorrem nas suas sombras. O objetivo de longo prazo é impedir que a Rússia tenha um aliado essencial no Oriente Médio, no contexto da guerra de fricção da OTAN contra a Federação Russa, cujo fim é destruí-la.

O risco nuclear é óbvio, por mais que seja ocultado pela mídia em todo o "mundo livre". Os autores dos editoriais do Washington Post, depois de promover a ficção das armas de destruição em massa no Iraque, exigem que Obama ataque a Síria. Hillary Clinton, que durante a destruição da Líbia se regozijou publicamente no seu papel de algoz, vem indicando repetidamente que, como presidente, ela iria "mais longe" que Obama.

De Washington, o jornalista samizdat Gareth Porter revelou recentemente quais pessoas, dentre as que provavelmente comporão o ministério de Hillary Clinton, acalentam planos de atacar a Síria. Todos apresentam históricos beligerantes relativos à Guerra Fria. O ex-diretor da CIA, Leon Panetta, diz que "o próximo presidente vai ter que considerar ampliar as forças especiais em ação".
O mais notável na atual inundação de propaganda de guerra é que ela é, ao mesmo tempo, patentemente absurda e familiar. Tenho pesquisado arquivos de filmes de Washington dos anos 50, época da caça às bruxas entre diplomatas, funcionários do governo e de jornalistas arruinados pelo senador Joe McCarthy, por desafiar as mentiras e a paranóia em relação à União Soviética e à China. Como um tumor que ressurge, a seita anti-Rússia está de volta.

Na Grã-Bretanha, Luke Harding, do Guardian, conduz os odiadores da Rússia do seu jornal ao longo de uma enxurrada de paródias jornalísticas nas quais são atribuídas a Vladimir Putin todas as iniquidades terrenas possíveis. Quando foram publicados os Panama Papers, a primeira página trazia o nome de Putin – e estampava uma foto de Putin –, ignorando o fato de que Putin nem ao menos era mencionado nos documentos vazados.

Assim como Milosevic, Putin é o Demônio Número Um. Foi Putin que atirou no avião da Malásia que caiu em território ucraniano. Título: "Que eu saiba, Putin matou meu filho" (evidências foram consideradas desnecessárias). Foi Putin o responsável pela derrubada do governo eleito em Kiev em 2014, que foi devidamente documentada e financiada por Washington. E foi resultado da "agressão" de Putin a campanha de terror subsequente empreendida por milícias fascistas contra a população de língua russa da Ucrânia. Outros exemplos da "agressão" de Putin foram: impedir que a Crimeia se tornasse uma base de mísseis da OTAN e, além disso, proteger a população, na sua maioria russa, que em fevereiro havia votado a favor no referendo sobre a reunificação com a Rússia – a partir do qual a Crimeia foi anexada à Federação Russa. A difamação promovida pela mídia inevitavelmente se converte em guerra promovida pela mídia. Deflagrada a guerra contra a Rússia, seja premeditadamente ou por acidente, os jornalistas têm grande parte da responsabilidade.

Nos EUA, a campanha anti-Rússia foi elevada à condição de realidade virtual. Paul Krugman, colunista do New York Times, economista agraciado com um Prêmio Nobel, chamou Donald Trump de "Candidato Siberiano" por Trump ser o homem de Putin, segundo ele. Trump se atreveu a sugerir, em um momento de rara lucidez, que a guerra com a Rússia pode ser má ideia. Na verdade, ele foi mais longe e retirou da plataforma republicana o envio de armamentos americanos para a Ucrânia. "Não seria ótimo se nos entendêssemos com a Rússia?", disse ele.

Daí o ódio do establishment liberal belicista dos EUA contra ele. O racismo de Trump e sua eloquente demagogia não têm nada a ver com isso. O histórico de racismo e extremismo de Bill e Hillary Clinton é trunfo suficiente para tirar Trump do jogo a qualquer momento (esta semana é o 20º aniversário da "reforma" do bem-estar que deu início a uma guerra contra os afrodescendentes nos EUA). Quanto a Obama, enquanto a polícia dos EUA abate a tiros seus pares afrodescendentes, a grande esperança da Casa Branca não faz nada para protegê-los, nem para aliviar o empobrecimento. Enquanto isto, Obama trava quatro guerras covardes e conduz uma campanha de assassinatos sem precedentes.

A CIA exige que Trump não seja eleito. Os generais do Pentágono exigem que ele não seja eleito. O New York Times, cujo posicionamento é sempre pró-guerra, suspendeu temporariamente a difamação implacável e rasteira de Putin, mas exige que ele não seja eleito. Algo está acontecendo. Essas tribunas a favor da "guerra sem fim" se aterrorizam ante a possibilidade de que a multibilionária indústria da guerra, através da qual os Estados Unidos mantêm seu domínio, venha a ser prejudicada no caso de um eventual acordo de Trump com Putin e, em seguida, com o chinês Xi Jinping. O pânico demonstrado ante a possibilidade de a maior potência do mundo falar de paz – ainda que improvável – poderia ser vista como uma comédia negra se não se tratasse de assunto tão crucial.

"Trump teria amado Stalin!", bradou o vice-presidente Joe Biden em um comício de Hillary Clinton. Enquanto ela assentia com um gesto de cabeça, ele gritava: "Nós nunca nos curvamos. Nunca nos dobramos. Nunca nos ajoelhamos. Nunca cedemos. A linha de chegada é nossa. Nós somos assim. Somos a América!"

Na Grã-Bretanha, Jeremy Corbyn também suscitou histeria dos beligerantes do Partido Trabalhista e de uma mídia que se dedica a destruí-lo. Lord West, ex-almirante e Ministro do Trabalho, formulou bem: Corbyn estava assumindo uma postura anti-guerra "ultrajante" porque "com isso consegue que as massas que não pensam votem nele".

Em um debate com Owen Smith, contumaz desafiador de lideranças, o moderador perguntou a Corbyn: "Como você agiria ante uma violação, por parte de Vladimir Putin, de um estado membro da OTAN?" Corbyn respondeu: "Para começo de conversa, é bom que isso não aconteça. Seria preciso estabelecer um bom diálogo com a Rússia... Tentaríamos introduzir um processo de desmilitarização das fronteiras entre a Rússia, a Ucrânia e os outros países entre a Rússia e a Europa Oriental. O que não podemos permitir é uma escalada calamitosa da quantidade de soldados dos dois lados, o que só pode levar a um perigo de grandes proporções".

Pressionado a dizer se ele autorizaria uma guerra contra a Rússia "se tivesse que fazer isso", Corbyn respondeu: "Eu não desejo a guerra – o que eu quero conseguir é um mundo em que não seja necessário ir à guerra".

A linha de questionamento se deve em grande parte à ascensão dos senhores da guerra liberais da Grã-Bretanha. O Partido Trabalhista e a mídia há muito tempo lhes abriram oportunidades de prosperar. Por um tempo, o tsunami moral do estrondoso crime do Iraque fez com que eles se debatessem. Suas inversões [distorções] da verdade foram um constrangimento temporário. Independentemente de Chilcot e da montanha de fatos incriminatórios, Blair segue sendo uma inspiração para eles, porque ele era um "vencedor".

Desde então, os dissidentes na imprensa e na academia vêm sendo sistematicamente banidos ou aliciados, e as ideias democráticas esvaziadas e recheadas com "políticas identitárias" que confundem gênero com feminismo e apreensão da população com liberação e com a prática de ignorar intencionalmente a violência do Estado e o lucro de uma indústria armamentícia que destrói uma quantidade incontável de vidas em lugares distantes, como o Iêmen e a Síria, fazendo pairar o espectro da guerra nuclear na Europa e em todo o mundo.

O engajamento de pessoas de todas as idades em torno da espetacular ascensão de Jeremy Corbyn em certa medida contrabalança esse cenário. Ele tem dedicado sua vida a elucidar os horrores da guerra. O problema para Corbyn e seus apoiadores é o Partido Trabalhista. Nos Estados Unidos, o problema para os milhares de seguidores de Bernie Sanders era o Partido Democrata, isto sem falar na traição final da grande esperança branca. Nos EUA, berço dos grandiosos movimentos dos direitos civis e dos pacifistas, quem abre o caminho para uma versão moderna de mobilização são movimentos como o Black Lives Matter, Code Pink e similares.

Pois só um movimento que se amplie atingindo cada uma das ruas, que atravesse fronteiras, e que não desista, pode deter os promotores da guerra. No próximo ano, um século terá se passado desde que Wilfred Owen escreveu o seguinte. Todo jornalista deve ler e recordar:


Se você pudesse ouvir, a cada solavanco, o sangue
Subir em gargarejos dos pulmões que se decompõem em espuma,
Obsceno como o câncer, amargo como a bile
De feridas incuráveis e vis em línguas inocentes,
Meu amigo, você não diria com tal eloquência
Às crianças que anseiam por uma glória desvairada
A velha mentira de que é belo e nobre
Morrer pela pátria.



3 comentários:

  1. Eu acho que Trump representa é a Merkel....mas isso ninguém fala.
    Nem aqui hehehe.

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  2. Sugestão para traduzir: http://in.rbth.com/blogs/stranger_than_fiction/2016/07/04/brics-should-prepare-for-braxit-a-brazilian-exit_608637

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  3. Carlos, alguém já traduziu este artigo. Esta nos comentários....

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