quarta-feira, 27 de julho de 2016

Revolução no centro do Velho Mundo, por John Helmer

Nova Aliança Bizantina: Kremlin e Porta Sublime


27/7/2016, John Helmer, Dance with Bears, Moscou

Dia 9 de agosto, em São Petersburgo, o presidente Vladimir Putin da Rússia reúne-se com o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan. É momento revolucionário. 

Nunca houve virada tão dramática quanto essa, em 67 anos, desde o estabelecimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN; nem ao longo do século transcorrido desde que o Império Otomano aliou-se à Alemanha, contra a Rússia, na 1ª Guerra Mundial; nem nos dois séculos desde que o sultão otomano Mahmud II e o Czar Alexandre 1º aliaram-se contra Napoleão e os britânicos.


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


Fontes russas dizem que têm certeza de que os serviços secretos russos não avisaram Erdogan nem ajudaram suas forças a derrotar o golpe contra ele, na noite de 15-16 de Julho. Mas depois que Erdogan iniciou seu contragolpe, e na luta que prossegue entre as forças islamistas de Erdogan e os militares turcos regulares, dizem as fontes, houve e haverá ajuda russa. Teve mais a ver com o futuro, explicam eles, do que com o que se passou semana passada, o que disse o vice-primeiro ministro turco Mehmet Şimşek a seu contraparte russo Arkady Dvorkovich em Moscou, na 3ª-feira: "Gostaria de agradecer pelo apoio relacionado a eventos recentes na Turquia, pelo apoio à democracia e ao governo turco."

As fontes russas dizem que já está acertado que as duas partes terão negócios, num quantum a ser definido em breve, em acordo de duas mãos, de gás, projetos de energia nuclear e outros tipos de energia, plus turismo. Mas, acrescenta uma das fontes, há muito mais em jogo.

"Putin e seus conselheiros acreditam que ainda há perigo para Erdogan. Estão apoiando o governante turco agora, por causa da oportunidade para reorganizar as relações com a Turquia. O objetivo é proteger a Rússia para que não seja cercada na fronteira sul e no Mar Negro, para que o Cáucaso não seja desmembrado e o Kremlin atacado por seus inimigos. Nesse momento, com a Europa em colapso, o inimigo são os EUA com a OTAN que os apoia. Se a Turquia romper com os EUA, a OTAN fica paraplégica. Vamos ver como Putin e Erdogan decidem reformatar a nova Roma, a nova Bizâncio,* na próxima 3ª-feira."

A agenda da nova aliança foi formalizada em reunião do Conselho de Segurança na 2ª-feira à tarde. O Kremlin anunciou:

"O presidente fez saber aos membros permanentes do Conselho de Segurança da conversa que teve por telefone com o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan e o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu no contexto da preparação para a visita do presidente da Turquia à Rússia marcada para o início de agosto."

Nem uma palavra sobre os informes militares e de segurança que Putin recebeu do ministro da Defesa Sergei Shoigu e do chefe do Serviço de Inteligência Estrangeira [ru. SVR] Mikhail Fradkov; do vice-diretor do Conselho Rashid Nurgaliyev; e do diretor do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa [ru. FSB] Alexander Bortnikov.

(a partir da esquerda) Shoigu, Fradkov, Nurgaliyev e Bortnikov.
Fontes russas desmentem a narrativa da mídia-empresa estrangeira para a tentativa de golpe militar da semana passada, que sugeria que árabes e israelenses teriam sabido antecipadamente do golpe. "Houve, sim, conspiração, suborno e muito wishful thinking", comenta uma das fontes. "Mas que soubessem e que tenham participado, não, não foi o que aconteceu."


Numa análise das operações militares em Istanbul e Ankara, Yevgeny Krutikov, correspondente de Vzglyad em Moscou, noticiou que não houve coordenação entre Exército, Marinha e Força Aérea turcos; que o comando e controle dentro de cada força deixaram a desejar; tropa e poder de fogo nas ruas insuficientes para controlar a reação a favor de Erdogan.

"Simplesmente não houve rebeldes em número suficiente. Nem cadeia de comando. As 'unidades de captura' mandadas para instalações importantes consistiam de no máximo dez pessoas, sob comando de capitães a tenentes-coronéis. Na liderança dos insurgentes não havia ninguém com patente superior à de coronel. Toda a 'companhia rebelde' fez o que pôde. Para tomar o poder em país que tem forças altamente militarizadas, [é preciso] mais que um batalhão de tanques e um par de helicópteros. Para divisões maiores, eles [os rebeldes] simplesmente não conseguiam dar uma ordem – sem que alguém lhes perguntasse, aliás, pergunta muito razoável: mas, quem, afinal, são vocês?"

Os serviços de inteligência russos ajudaram Erdogan?

"Não é verdade" – segundo Krutikov. – "Não houve absolutamente acordo algum entre serviços de inteligência da Rússia e da Turquia. De fato, todos os contatos foram congelados depois que o jato russo [SU-24] foi derrubado. Nossos militares monitoraram sinais de rádio das manobras das forças armadas do golpe, sim. Mas é pouco provável que essa informação tenha sido transmitida aos serviços especiais turcos."

Fontes russas não comentam algum possível papel dos militares e agências de inteligência dos EUA nos eventos de 15 de julho na base aérea Incirlik e noutros pontos, para encorajar – ou para não desencorajar – a tentativa de derrubar Erdogan. O que é certo, como Erdogan tenta evidenciar, segundo analistas gregos e cipriotas, é que a Turquia virou-se contra os EUA e a aliança da OTAN. 

"A Turquia move-se agora na direção de não mais depender do ocidente" – diz uma bem informada fonte regional que pede que seu nome não seja divulgado:

"Faz sentido geopolítico, porque o 'ocidente' perdeu o controle sobre o Oriente Médio. Outros aliados próximos do ocidente na região, como Egito, Arábia Saudita e Israel vão-se tornando autônomos, no sentido de que já não obedecem aos EUA. Isso porque os EUA já não têm os meios necessários para agir como hegemon. Washington não pode ditar ordens, sequer pode recomendar solução em conflitos ou rivalidades como Iraque, Síria, Líbia ou Palestina. Agora, com ou sem envolvimento direto dos EUA no golpe da Turquia, Erdogan vê sua chance para garantir maior autonomia à Turquia. E está colhendo a oportunidade."

Fontes russas concordam. Falando da vice-secretária de Estado Victoria Nuland, cujo plano de ataque contra a Rússia na Ucrânia, Turquia, Síria e Chipre já foi comentado aqui e aqui, uma fonte de Moscou conclui:

"As conspirações de Nuland falharam todas. Os EUA já não podem conversar com os turcos. Perder a Turquia para Erdogan e seus islamistas também significa que os EUA já não têm voz nessa região. Não se pode esperar que os EUA deixarão ficar, sem reagir. No momento, não há governo em Washington. Mas se Clinton for eleita, haverá alguma reação dos EUA. Será tarde demais."

Como princesas francesas e Nuland dizem publicamente, revoluções exigem brioches; no mínimo, umas rosquinhas. Os acertos de curto prazo com os parceiros de negócios de Erdogan, e o presidente Putin, foram discutidos tranquilamente na reunião de 26 de julho entre Dvorkovich e Simsek (na foto, um à esquerda, o outro à direita); e na reunião subsequente entre o ministro da Energia da Rússia Alexander Novak e os ministros turcos da Economia e da Energia Nihat Zeybekci e Berat Albayrak. Detalhes dessas conversas, aqui.

Ext. esq., Dvorkovich; à dir., Simsek



Fontes militares avaliam que a posição de Erdogan continua longe de garantida.

"Os números e a extensão dos expurgos dizem que se trata de golpe continuado, que a qualquer momento pode converter-se em revoltas étnicas ou entre grupos comunitários, ou em guerra civil. A Rússia está posicionando-se, como fez no passado, a favor da estabilidade do estado turco – isso, no momento, significa Erdogan. O Kremlin é contrário à ruptura. No século 19 e início do 20, uma Turquia fraca significou, para Moscou, que inimigos da Rússia ganharam controle sobre interesses russos que naquele momento eram vitais, como o Estreito."

Fontes gregas, cipriotas e russas, questionadas sobre o atual curso dos eventos, dizem que os principais objetivos dos russos são óbvios. Erdogan tem de parar de exportar jihadistasISIS e sedição para o Cáucaso russo, na forma dos chechenos. Tem também de parar com suas táticas pró 'mudança de regime' na Síria, e não menos nos Estados Bálticos e na Ásia Central. As fontes creem que, na atual configuração, Erdogan é melhor aposta para o Kremlin que os militares turcos ou os chamados grupos políticos Kemalista ou Gülenista, encorajados pelos EUA. Se os elementos pró-EUA ou OTAN puderem ser desentranhados e destruídos, a Rússia deve poder sentir-se mais segura – pelo menos enquanto a orientação islamista sunita de Erdogan permaneça em paz com a Rússia, como fazem hoje os xiitas do Irã e do Iraque.

Segundo um especialista em história militar da Rússia, "Putin hoje não pode ser diferente do Czar [Nicolau 2º] em 1914. Imprevisibilidade e instabilidade na Turquia são ameaças para a Rússia, porque facilitam a aproximação de inimigos mais poderosos." Para conhecer a conclusão de um historiador ocidental sobre o mesmo ponto, veja aqui.

Economistas políticos em Moscou veem o benefício recíproco para Moscou e Ankara no gasoduto Ramo Sul (também chamado Ramo Turco), que pode ser ressuscitado. A Gazprom garantirá a venda de grandes volumes de gás para o sul e o ocidente; a Turquia pode beneficiar-se de se converter num nodo de passagem de energia, não só do gás russo, mas também de novos fluxos de Israel, talvez do Líbano, potencialmente até de Chipre.

Um conhecido analista cipriota observa:

"Sim, Chipre está bem posicionada, apesar da trágica situação à nossa volta. Pelo menos, acabou-se a hegemonia, acabou-se a hegemonia ocidental. É bom, porque grande parte do problema de Chipre advém daquela hegemonia [anglo-norte-americana] e dos esforços dela para se manter. O que fizeram, ao subverter a modernização do mundo árabe, foi o maior crime do final do século 20 e início do século 21."

"Voltando a Chipre – com múltiplas garantias, não só do ocidente, e com a Turquia mais autônoma, e já sem ser peão de outros, as garantias para a reunificação de Chipre serão mais realistas. Manifestarão geograficamente o real equilíbrio de poder, e também do futuro."

Há apoio regional para a reaproximação entre Putin e Erdogan, mesmo entre os mais ferozes inimigos históricos dos turcos. Veem o Kremlin como força mais confiável para lidar com as aventuras e expansão dos militares turcos, do que norte-americanos, britânicos ou OTAN, considerada a experiência já acumulada. Diz o analista cipriota:

"O gás natural é o futuro de Chipre para todos os partidos e tendências políticas. Mas hoje o que move a economia são o turismo e o crescente papel dos capitais russos, além da pequena mas ascendente comunidade russa. A Rússia tem vários papeis a desempenhar em Chipre. É provavelmente a força de maior apelo aos olhos de praticamente todos os segmentos da população de Chipre – às massas à esquerda; ultimamente ao centro, e a porção significativa da direita religiosa, depois de quase um século, embora ainda não seja força autônoma. Se agora a Rússia volta a ser amiga da Turquia, podemos até ter amigos turcos cipriotas."
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* A doutrina da Nova (ou Terceira) Roma faz referência à ideia russa ortodoxa de que Moscou é sucessora, ou, se e quando Deus quiser, sucederá as antigas Roma e Constantinopla Bizantina como centro da verdadeira cristandade e de seu império.


Um comentário:

Anônimo disse...

O mau uso do Esporte no jogo sujo dos EUA na geopolítica mundial:

http://www.ocafezinho.com/2016/07/27/pesos-medidas-e-coincidencias/