domingo, 26 de junho de 2016

Um passo real a favor da paz e da democracia: Por que os britânicos disseram não à Europa

24.06.2016, John Pilger, Counterpunch


Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


O voto da maioria dos britânicos a favor de seu país deixar a União Europeia foi ato de democracia crua e bruta. Milhões de pessoas comuns recusaram-se a ser assediadas, intimidadas e descartadas com desprezo não disfarçado, pelos seus eleitos, pressupostos os melhores, pelos grandes partidos, por 'líderes empresariais', pela oligarquia da banqueiragem e pela mídia-empresa.

Foi, em grande medida, um voto dos desmoralizados e mortos de medo, das vítimas da arrogância descarada dos que fizeram apologia do "Fica", agentes do desmembramento de uma vida civil socialmente justa na Grã-Bretanha.


Último bastião das reformas históricas de 1945, o Serviço Nacional de Saúde foi subvertido pelos privateiros apoiadores dos Tories e dos Trabalhistas, em luta para sobreviverem.


O primeiro aviso veio quando George Osborne, do Tesouro da Grã-Bretanha, encarnação simultânea do ancient regime britânico e da máfia da banqueiragem europeia, ameaçou cortar £30 bilhões dos serviços públicos, se a população votasse 'errado'. Foi chantagem em escala chocante.



A imigração foi explorada na campanha com cinismo consumado, não só por políticos populistas da direita lunática, mas também por políticos do Partido Trabalhista, sempre fieis àquela venerável tradição deles de promover e nutrir o racismo, sintoma de corrupção, não na base, mas no topo. 


A razão pela qual milhões de refugiados fogem do Oriente Médio – primeiro, do Iraque, agora da Síria – são as invasões e os ataques imperiais cometidos por Grã-Bretanha, EUA, França, União Europeia e OTAN. Antes disso, foi a deliberada destruição da Iugoslávia. Antes, o roubo da terra palestina e a imposição ali de Israel.

Os casquetes colonialistas saíram de moda há muito tempo, mas o sangue nunca secou. Um desprezo à século 19 por países e povos, dependendo do grau de utilidade colonial de uns ou outros, ainda é a pedra basilar da moderna "globalização", com seu socialismo perverso só para os ricos, e capitalismo para os pobres: a liberdade para o capital e a servidão para o trabalho; políticos pérfidos e funcionários públicos politizados.

Tudo isso agora chega à Europa, voltando para casa, enriquecendo os Tony Blairs e miserabilizando e desempoderando milhões. Dia 23 de junho, os britânicos disseram que chega, basta, vai acabar.

A propaganda mais efetiva pró "ideal europeu" não veio da extrema direita, mas de uma classe insuportavelmente patrícia, para a qual a Londres metropolitana é o Reino Unido. Os líderes aí se veem eles mesmos como liberais, ilustrados, tribunos cultos da visão de mundo do século 21, realmente "cool". Mas e se não passarem de burgueses com gostos insaciavelmente consumistas e instintos ancestrais da própria superioridade 'de berço'? No jornal que nunca falta à mesa matinal deles, o Guardian, eles exultaram, dia após dia, ao lado até de alguns que achavam a UE profundamente não democrática, fonte da injustiça social e extremismo virulento conhecido como "neoliberalismo".

O objetivo desse extremismo é implantar uma teocracia capitalista permanente que garanta que existam 2/3 da sociedade, a maioria dividida e endividada, gerenciada pela classe empresarial, e todos os trabalhadores permanentemente pobres. Na Grã-Bretanha hoje, 63% das crianças pobres crescem em famílias nas quais só um adulto trabalha. Para essas, a arapuca já se fechou. Mais de 600 mil residentes na segunda maior cidade da Grã-Bretanha, a Grande Manchester, estão, dizem um estudo, "conhecendo os efeitos de pobreza extrema" e 1,6 milhão já escorregaram para a miséria.

Pouco dessa catástrofe social é vista pela mídia-empresa que os burgueses controlam, especialmente a BBC, dominada porOxbridge. Durante a campanha do referendo, praticamente nenhuma análise aproveitável conseguiu furar a muralha da histeria-clichê sobre "deixar a Europa" – como se se tratasse de a Grã-Bretanha decidir que o país mergulhe em correntes marítimas hostis em alguma praia do norte da Islândia.

Na manhã depois da votação, um repórter da BBC recebia políticos no estúdio, como se todos fossem velhos amigos. "Pois muito bem" – disse o repórter a "lord" Peter Mandelson, o amaldiçoado arquiteto do Blairismo –, "por que essa gente tanto quer a coisa?!" "Essa gente" é a maioria dos britânicos.

O milionário criminoso de guerra Tony Blair ainda é herói da classe "europeia" de Mandelson, mesmo que hoje poucos o reconheçam. O Guardian certa vez descreveu Blair como "místico", e mantém-se rigorosamente fiel ao "projeto" dele de guerra predatória. No dia seguinte à votação, o colunista Martin Kettle encontrou saída Brechtiana para o mau uso que as massas teriam dado aos próprios direitos democráticos. 

"Afinal, todos nós concordamos: referendos fazem mal à Grã-Bretanha" –, lia-se na manchete de sua coluna de página inteira. Não explicou quem era "nós", mas subentendia-se: aquela tal mesma "gente". "O referendo conferiu menos legitimidade à política" – escreveu Kettle –"não mais." "Veredito sobre referendos tem de ser duríssimo. Nunca mais."

O tipo de dureza com que Kettle sonha pode ser encontrado na Grécia, país hoje já praticamente apagado do mapa. Houve lá um referendo, cujo resultado foi ignorado. Como o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, os líderes do governo do Syriza em Atenas são produto de uma classe média alta, afluente, altamente privilegiada e educada, formada e treinada na falsidade e nas traições políticas do pós-modernismo. O povo grego corajosamente usou o referendo para exigir que seu governo buscasse "melhores termos" com um status quo venal em Bruxelas, que estava esmagando a vida no país deles. Foram traídos, como os britânicos também seriam traídos.

Na 6a-feira, a BBC perguntou ao líder do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn se homenagearia o já demissionário Cameron, seu parceiro na campanha a favor do "Fica". Corbyn excedeu-se em demorados elogios à "dignidade" de Cameron, lembrando que ele apoiara o casamento homoafetivo e o quanto se desculpara ante as famílias irlandesas dos mortos do Domingo Sangrento. Nada disse sobre as brutais políticas de austeridade de Cameron, as muitas mentiras sobre "proteger" o Serviço de Saúde. Nem fez lembrar às pessoas o quanto o governo de Cameron promoveu guerras: mandou forças britânicas especiais à Líbia, bombardeiros britânicos para a Arábia Saudita e, sobretudo, a incansável promoção de uma terceira guerra mundial.

Na semana do referendo, nenhum político, que eu saiba, nem nenhum jornalista britânico fez qualquer referência ao discurso de Vladimir Putin à Assembleia Estadual de S.Petersburgo, na solenidade que marcou os 75 anos da invasão da Rússia pelos nazistas. A vitória dos soviéticos – ao custo de 27 milhões de vidas de soviéticos – determinou o fim da 2ª Guerra Mundial.

Putin mostrou as semelhanças que ligam o atual frenético acúmulo de soldados e armas da OTAN junto às fronteiras ocidentais da Rússia, à Operação Barbarossa, do 3º Reich. Os exercícios da OTAN na Polônia são os maiores desde a invasão nazista; a Operação Anaconda foi ataque simulado à Rússia, presumivelmente com armas atômicas. 

À véspera do referendo, o traidor secretário-geral da OTAN Jens Stoltenberg alertou os britânicos de que estariam pondo em risco "a paz e a segurança" se votassem a favor de a Grã-Bretanha separar-se da União Europeia. Os milhões que o ignoraram e que não se intimidaram ante as falas ameaçadoras de Cameron, Osborne, Corbyn, Obama e do homem que dirige o Banco da Inglaterra podem talvez – talvez, talvez – ter realmente dado um passo adiante na direção de paz e democracia reais na Europa.*****