segunda-feira, 7 de setembro de 2015

De pilhas de lixo a pilhas de ruínas: 'Revolução colorida' 2.0 no Líbano

3/9/2015, Tony Cartalucci,[1] New Eastern Outlook


6/7/2019, Rana Harbi ‏@RanaHarbi [De Beirute]
Desde 2012 os "rebeldes" cantavam "Cristãos p'ra Beirute, alawitas pr'o cemitério".
Não me venham agora com conversa fiada de "ISIS sequestrou nossa revolução"!

"Espontânea." "Genuína." "Desafiadora". Os 'marketeiros' do Departamento de Estado usaram todos esses rótulos na tentativa para caracterizar as recentes ondas de 'revoluções coloridas', diferenciando-as das fórmulas agora cansadas, inefetivas e desgastadas usadas em todo o planeta, da "Primavera Árabe" à Euromaidan na Ucrânia, à Bersih 4.0 na Malásia, todas ações arquitetadas nos EUA.






Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu




O mais recente alvo é o Líbano, onde começaram manifestações de rua na capital, Beirute. Marcadas por gritos e cartazes de "VocêFede!" [orig. “YouStink!”], as marchas seriam supostamente geradas pelo fracasso dos serviços municipais de recolhimento de lixo, que pararam de funcionar. Mas, bem previsivelmente, os protestos mudaram rapidamente para o que está sendo mostrado como demandas legítimas para derrubar o regime (ditas, como sempre, justa demanda para "mudança de regime").

Bem recentemente, na Armênia, os EUA fizeram o que parece ter sido o ensaio geral de seu sistema modernizado e aprimorado de "revolução colorida" para mudança de regime. Ali, tentaram criar um movimento com pouco ou nenhuma filiação política inicial e com profundos laços, bem ocultados, entre organizadores dos protestos e contatos dentro do Departamento de Estado. No final, os protestos batizados de “Electric Yerevan”, porque teriam como pretexto os aumentos nas contas de energia elétrica, consumiram tempo demais para convencer armênios e muita gente em todo o mundo de que ali não havia a mão dos EUA, o que tomou o tempo dos 'revolucionários' e impediu que o movimento passasse para a etapa posterior.


O truque ali foi, primeiro, usar os aumentos nas contas como pretexto para os 'protestos'; na sequência, os 'manifestantes' passariam a exigir mudança de governo. Provavelmente, havia provocações e violência planejadas para estágios posteriores, além de oportunidades, para os partidos de oposição clientes dos EUA, para avançar e pôr nas ruas também seus próprios apoiadores.

Na Armênia, a nova geração de revoluções coloridas produzidas nos EUA falhou.

Mas em Beirute, parece que os protestos evoluíram, no mínimo, até o ponto em que o pretexto alegado – pilhas de lixo não recolhido das ruas – já foi substituído por demandas de "mudança de regime".

Apesar de a chamada "Revolução do Cedro", de 2005, já ter sido integralmente desmascarada como ação, do começo ao fim arquitetada e conduzida pelos EUA – que pavimentou o caminho para que tropas sírias deixassem o Líbano e Israel pudesse atacar o país, como fez, no ano seguinte –, muitos, mesmo na mídia alternativa, deixam-se enganar hoje, por ação que não passa de continuação (embora concebida com mais cuidado) dos eventos de 2005.

Identifique os cabeças, siga o dinheiro

Deixando de lado as avaliações emocionais das ações de rua, e sem apenas repetir supostas demandas e motivações dos próprios manifestantes, é preciso ver que protestos, como tudo no mundo real – exigem líderes, organização, dinheiro, logística e infraestrutura. Os movimentos do "VocêFede!" não são diferentes Se se vasculham os 'relatos' da imprensa comercial ocidental, encontram-se vários nomes repetidos como "organizadores" e "líderes".

Entre esses nomes aparece sempre o de Asaad Thebian, aluno da Iniciativa da Parceria do Departamento de Estado dos EUA e Oriente Médio [orig. US State Department’s U.S.-Middle East Partnership Initiative (MEPI)]. Em 2014, Thebian discursava à frente de bandeiras dos EUA, de uma tribuna que exibia o brasão do Departamento de Estado dos EUA em evento da MEPI, deblaterando contra o governo do Líbano. Agora, em 2015, lá está, obrando para derrubar o governo. A rede Al-Jazeera citou palavras desse Thebian: "'Começamos com algumas dúzias de manifestantes. Agora somos milhares' – disse Asaad Thebian, ativista da campanha VocêFede!, em conferência de imprensa na 6ª-feira. – 'Exigimos eleições parlamentares'". 

O jornal The International Business Times elaborou sobre o que está claramente tomando forma como a real agenda por trás dos protestos em Beirute. No artigo "Manifestantes de 'VocêFede!' em Beirute fazem ultimatum de 72 horas e protestos alastram-se pelo Líbano", lê-se que: "Na simbólica Praça dos Mártires em Beirute, manifestantes cantavam 'O povo quer derrubar o governo" e "Revolução!" Alguns já observaram semelhanças entre os atuais protestos e os comícios que varreram muitos países árabes em 2011 e 2012, que levaram à mudança de vários regimes no Oriente Médio e Norte da África".

Ombro a ombro com Thebian está Michel Elefteriades que ajudou a coorganizar os tumultos orquestrados pelos EUA no Líbano em 2005 divulgados como "Revolução do Cedro", e trabalhou por muitos anos para expulsar do Líbano o exército sírio. O jornal International Business Times (IBTimes GB, de Beirute) entrevistou longamente Elefteriades, que teria dito, com exclusividade, que: “O que vemos aqui nada tem a ver com o que aconteceu no Egito ou noutros locais onde as pessoas foram manipuladas, ou não tinham forte consciência política.”

Elefteriades, além de dizer que seu 'protesto' seria diferente de todos os demais, também cuidou de acalmar temores de que se crie um vácuo de poder, caso o atual governo seja deposto: "Há uma liderança pronta a assumir o poder e não haverá vácuo algum" – prometeu Elefteriades. – "Há muita gente com grandes capacidades, todos sufocados pela atual elite política e essa nova classe nunca conseguiu liderar o país porque os donos do poder não lhes cedem qualquer espaço. Assim, logo que os políticos velhos saírem, rapidamente emergirão políticos novos, de um dia para o outro." 

Há também um Lucien Bourjeily, ator de teatro que, em 2012 organizou um espetáculo em Londres “66 Minutos em Damasco.” O Guardian de Londres elogiou a peça, na qual o público era "mergulhado" na experiência de ser "prisioneiro político do fracassado governo Assad", na Síria.

Muito importante, para que se entenda o que realmente está acontecendo em Beirute é o apoio de Walid Jumblatt aos manifestantes. Em matéria da Agência Nacional Libanesa de Notícias, sob o título “Jumblatt conclama organizadores de VocêFede a não se deixarem manipular politicamente", lê-se que "O deputado Walid Jumblatt tuitou no domingo que os protestos de sábado no centro de Beirute são expressão autêntica do sofrimento pelo qual passam os libaneses. Conclamou os responsáveis pelo movimento VocêFede a não deixar que partidos políticos se aproveitem desse "movimento espontâneo" e o levem a fracassar. Também conclamou os organizadores do VocêFede a estudar o mecanismo adequado para atender às demandas do movimento.

A 'conclamação' de Jumblatt é semelhante à dos partidos de oposição manobrados pelos EUA na Armênia, que só faziam repetir que os protestos eram "espontâneos" e que o movimento local, de muito evidente orientação política, permanecesse "apolítico". Um toque extra na rodada de manifestações de rua foi que os manifestantes rejeitaram qualquer apoio de Jumblatt ao movimento. O que não impede que Jumblatt e outros venham ainda a liderar o movimento, se se prolongar por tempo suficiente, antes de a violência sectária ser finalmente acionada.

O papel de Jumblatt é importante e seu nome é bem conhecido de quem acompanhe os eventos no Oriente Médio. Foi Jumblatt quem conspirou como então vice-presidente dos EUA Dick Cheney, para encontrarem o melhor caminho para desestabilizar a vizinha Síria, nos anos que antecederam o início da guerra de 2011. Revelado em matéria de 2007, do jornalista e Prêmio Pulitzer Seymour Hersh – “The Redirection: Is the Administration’s new policy benefitting our enemies in the war on terrorism?” – Jumblatt sugeriu usar a Fraternidade Muçulmana Síria, esquema que já naquela época estava em andamento.

Escreve Hersh: "Jumblatt então me disse que se encontrara com o vice-presidente Cheney em Washington no outono passado, para discutir, dentre outros temas, a possibilidade de desestabilizar Assad. Jumblatt e seus colegas disseram a Cheney que, se os EUA desejam agir contra a Síria, "tratem de conversar logo com a Fraternidade Muçulmana na Síria", palavras de Jumblatt".

Hersh também noticiou que a Fraternidade já então estava recebendo dinheiro dos EUA e Arábia Saudita. Claro, em 2011, a Fraternidade Muçulmana Síria, associada à Al-Qaeda, usariam aqueles recursos para iniciar confrontação armada com o governo sírio que se arrasta até hoje. Os eventos que Jumblatt ajudou a pôr em andamento em 2007 e a guerra na Síria que se trava desde 2011, estão diretamente conectados ao movimento VocêFede!

Considerando as várias linhas que interconectam todos os envolvidos nos atuais protestos no Líbano o que se vê é o apoio geral garantido pelos EUA e o ódio declarado à Síria. Qualquer argumento que tente apagar a motivação sectária e o interesse político em VocêFede! é bem claramente falso, esforço para desorientar as pessoas, como os slogans que falam de "pilhas de lixo" e a insistência em fazer crer que o atual movimento não seria mais uma revolução colorida das que, como todos os libaneses sabem, os EUA arquitetaram no Oriente Médio e Norte da África. A verdade é que, como na Armênia no início desse ano, trata-se, precisamente, de mais uma 'revolução colorida' inventada, financiada, mantida e ampliada pelos EUA.

Das pilhas de lixo, às pilhas de ruínas 

O objetivo final é criar caos no Líbano, suficiente para interromper as operações do Hezbollah na região contra o exército de terroristas dos EUA e seus aliados regionais, inclusive ações que organizadores de VocêFede já planejavam em 2007. 

Como no passado, os protestos no Líbano visam não a melhorar o futuro do povo libanês, mas, sim, a tornar cada dia mais difícil o sucesso de qualquer tentativa que haja para estabilizar a situação na Síria.

O que se virá desses 'protestos' nada autênticos ameaça ser reprise do que se viu depois da chamada "Revolução do Cedro", em 2005. Imediatamente depois daqueles protestos – pelos quais os EUA até já admitiram que são responsáveis – e da retirada de soldados sírios que permaneciam no Líbano... Israel iniciou vastos ataques aéreos e até uma invasão por terra, no Líbano, no ano seguinte.

Apesar da impressão de que a "Revolução do Cedro" deixara o Líbano particularmente vulnerável, as operações israelenses apoiadas pelos EUA contra o Líbano terminaram em catástrofe para Telavive. A campanha aérea não conquistou nenhum dos objetivos nem estratégicos nem táticos, e a invasão por terra foi repelida, com Israel forçada a cancelar o ataque e a retroceder antes de chegar ao Rio Litani – objetivo declarado da forças terrestres sionistas israelenses.

Se o movimento VocêFede! for ampliado e alcançar nível de caos que abale o Hezbollah no Líbano, e com os recursos do Partido da Resistência aplicados também na vizinha Síria, na luta contra terroristas pagos, armados e apoiados pelos EUA e seus aliados regionais, é bem possível que Israel volte a ser usada, em conflito à moda de 2006, ou mais violento, na esperança de que, dessa vez, a dinâmica da região esteja operando mais a favor do 'ocidente'.

Independente do que resulte da operação VocêFede!, a pressão política adicional que a desestabilização política no Líbano impõe sobre Damasco e Teerã só pode operar contra quaisquer esforços para restaurar a paz e a estabilidade em todo o Levante.

Organizadores de VocêFede dizem que lutam pelo futuro do Líbano. Mentira. A única verdade é que estão gerando riscos extraordinários não só para o futuro do Líbano, mas para toda a região. É como acender um fósforo numa região já superaquecida nos fogaréus de vários conflitos próximos. Se VocêFede! alcançar seus reais objetivos, causaram sofrimento terrível a todos no Líbano e a muitos mais fora das fronteiras do Líbano. 

E, como nos dias da "Revolução do Cedro", os únicos que se beneficiarão dessa desgraça e do caos aí gerados são os EUA e seus aliados regionais, que buscam, nada menos, que o completo e perpétuo fracasso do Líbano como estado soberano. *****

[1] Tony Cartalucci é autor e pesquisador especializado em geopolítica. Escreve para o jornal onlineNew Eastern Outlook”.

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